terça-feira, 14 de julho de 2015

Entre Mares e Marés: Conversas Epistolares (Parte VI)

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Querido Viana,

Saudades são muitas, destas nossas conversas. Parece que se passou uma eternidade desde o nosso último encontro (sim, para mim, são encontros, e eu quase sinto o cheiro do café que tomamos quando te escrevo e quando te leio). E falando do café, que aqui em Portugal é um ritual imprescindível, deixa-me sobrevoar alguns episódios engraçados. 

As pessoas encontram-se para tomar um café como pretexto para cimentar uma amizade recente, cometer uma inconfidência, fazer negócios, discutir um projeto, desenhar uma ideia ou partilhar um momento de abstração, falar de política ou literatura, conhecer talvez um futuro amor sem o saber. Café é tudo. Mesmo quem não toma café diz: “Quando é que vamos tomar um café?”. E depois bebe uma água, uma imperial (chopp) ou coisa nenhuma. O que conta é o simbolismo. Há tempos, quando estudava espanhol no Cervantes, a professora propôs-nos um artigo muito engraçado de um jornalista espanhol. Precisamente sobre o café. O homem dizia que só existiam dois países no mundo onde o café era bom: Portugal e Itália! Depois continuava humilhando impiedosamente o café americano, o mexicano e por aí afora… e ia mais longe, afirmando: “em Portugal, em qualquer aldeia remota do Alentejo, de Trás-os-Montes, seja onde for, onde há mais cabras que pessoas, se pode beber um expresso cremoso e perfumado. Noutros sítios, grandes metrópoles até, o que se bebe é água suja, sumo de terra”, isto dito por ele, que eu nem entro nessas polémicas, só me divirto… Um colega meu, praticante de desportos radicais, dizia que após seis meses na Austrália, ao reencontrar os primeiros amigos em Lisboa, só lhe perguntavam: “Como é o café, lá?”. Ele achava a preocupação absurda, mas isto tem a ver claramente com a alma portuguesa; que fazer? ou, como se diz na gíria suburbana angolana: “Vamos fazer mais como, então?”

Agora deixa-me fazer uma viragem de 360º graus para te responder sobre Maria Bonita e o Lampião, que nós conhecemos muito bem em Angola, sim, na minissérie dos anos 80. E é bom lembrar Nelson Xavier, actor arrepiante, que tive o prazer de rever agora há dias num filme brasileiro de que te falarei um dia destes detalhadamente. Esse universo do cangaço chegou até nós, lembro-me também do Zeca Diabo, cangaceiro famoso da ficção interpretado pelo incrível e insubstituível Lima Duarte, que tinha uma fé e uma religiosidade intrínseca e deliciosa, a par da sua insólita profissão.

Talvez essa familiaridade com a morte tenha a ver com a adversidade do clima, das condições de vida, a morte é roçada de perto tantas vezes que parece ser sentida como uma eventualidade muito próxima. Não quero fazer filosofia barata sobre tão sério assunto, mas é o que me ocorre…

Mas antes que eu me perca de vez, porque me conheço e tu me conheces, aqui vai a explicação do “sempre a aviar”: na verdade, essa expressão significa qualquer coisa que se faz sem interrupção, no contexto anterior (o homem que dizia que quando era novo era “sempre a aviar”) trata-se de um homem que teve uma infinidade de conquistas, umas atrás das outras (diz ele!); no universo masculino isso parece ser uma mais-valia importante…enfim, coisas de rapazes…e coisas de rapazes são também essas cumplicidades que juntam homens, como tu e o teu pai, conversando numa garagem em torno de motos e de carros. Essa cena é quase um clássico do cinema, e da vida real, claro. Vem-me à memória “O Gotejar da Luz”, do português Fernando Vendrell, em que o rapazinho se aconselha com o amigo mais velho sobre mulheres, sobre o amor, enquanto fumam um cigarro, no meio de uma oficina. Talvez seja comparável às conversas que as mulheres/meninas têm usualmente nas casas de banho dos restaurantes enquanto retocam a maquilhagem. Não quero traçar um quadro fútil nem estabelecer limites de género para nós (homens e mulheres), mas embora não sejamos iguais, temos rituais comparáveis, claro. 

Mas o fascínio por motos é uma coisa que eu já observei e sempre me intrigou: uma amiga que era gerente de um stand de motos disse-me um dia que os clientes de motos e de carros têm um perfil completamente diferente. Quem compra motos fá-lo impulsivamente, por paixão. Disso eu entendo, mesmo que não de motos. E também de vento na cara, sensação que eu não dispenso.

E deixaste-me surpresa com os teus passos sem sentido, muito mecânicos…e a vontade do teu coração. Eu queria perceber, sem invadir. Quase que entendo, parece-me um questionamento que temos de vez em quando na vida. A eterna dicotomia entre a razão, o que esperam de mim, e o que eu quero fazer no momento. Será isso? Em todo o caso tu pareces-me alguém com um equilíbrio invejável, que consegue ser racional sem deixar de ter empatia com as pessoas e de demonstrar emoções. Acertei?

Mas não te quero fazer esperar mais para te falar sobre o encontro de literaturas africanas da lusofonia. Foi nos jardins da Gulbenkian, uma Fundação com um espaço exterior muito bem aproveitado; ali estávamos numa tenda decorada para o evento e tudo decorreu num ambiente informal e caloroso. Os palestrantes, um moçambicano, uma cabo-verdiana e um angolano, todos escritores premiados e com um percurso de vida denso, gente com histórias dentro. Ungulani, Vera Duarte e José Luís Mendonça. A moderadora era uma professora portuguesa de literatura. Foi um encontro breve mas empolgante em que fiquei sobretudo fascinada pela comunicação e pela postura rigorosa mas descontraída de Vera Duarte, juíza desembargadora e ex-ministra, com um percurso na escrita e fora dela digno de nota. Neste colóquio falou-se do percurso das nossas literaturas durante os últimos 40 anos, da influência de autores brasileiros e portugueses, da interdependência, das nossas vivências e histórias, do estado actual das Letras nos nossos países. Fiquei com uma enorme curiosidade pela escrita de Vera e Ungulani, JL Mendonça já conheço e gosto bastante, sobretudo do seu primeiro romance recentemente publicado, “O Reino das Casuarinas”.

Li de uma assentada um romance de Vera e um livro de crónicas e reencontrei-a casualmente dias depois noutro lugar em Lisboa. Acolheu-me com uma enorme simpatia e alegria, estava de malas feitas para regressar a Cabo Verde mas ainda falámos alguns minutos e confirmei a impressão que os seus livros me deixaram: mulher de fibra, de um imenso coração e uma disponibilidade e clarividência que é raro encontrar. Talento, já nem falo, um dia vais lê-la também, o romance é “A Candidata”, e talvez o possas encontrar no Brasil, pois ela tem uma relação fortíssima com as Letras do Brasil e alguns académicos brasileiros. Gostava que o lesses para comentarmos, aliás penso escrever algo sobre o assunto, não é o tipo de obra que se encontre ao virar da esquina.

Querido amigo, fico por aqui mesmo, muito mais haveria para dizer, há sempre, mas a casa está em pinturas e eu tenho as costas todas moídas de esvaziar armários, limpar, arrumar de novo e fazer pausas para escrever, ou vice-versa.

Um beijo cheio de calor, com gosto de Grécia e Portugal, com tempero de Angola, com sabor a futuro e a esperança.

Sempre ansiosa por receber o teu abraço em forma de letra.

Clara
Lisboa, 09 de Julho de 2015


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Clara,

Tarde de sol ameno por aqui. Como vai Portugal? Como vão os portugueses? Como vai você, minha querida? E como a desafiar-me, ligo o áudio do notebook que agora uso para escrever esta missiva a você neste exato instante e no batuque psicodélico de um Radiohead lanço minhas palavras por todo o teclado. 

A vida, como diria o “poetinha” Vinicius de Moraes, é a arte do encontro, embora haja tantos desencontros em toda a sua extensão... pois, querida minha, cá estamos, encontramo-nos, para seguirmos a trilha da beleza que nos acerca e que nos aflora ainda mais ao passar do tempo que nos devora. Também eu fico a esperar você com muita ansiedade desde o momento em que finalizo cada carta-resposta que daqui segue em sua direção, Clara. É de nossa natureza a curiosidade sem limites, não?

Sinto o aroma da conversa. Deixo-me ao deleite. Café é artigo de história bem grande cá em terras tupiniquins, Clara. Brasil das milhões de toneladas de grãos de café, exportadas para todo o mundo. Dizem cá que produzimos o melhor de todos, mas que não chegamos a tomá-lo, a sorvê-lo, a senti-lo em aromas de cotidiano, de povo mesmo. As mais reluzentes safras vão direto para o exterior e ficamos nós com os grãos de menor qualidade. Ironia, não? Assim também acontece com nossas frutas e tantas outras coisas mais. 

Café nosso que foi até piso-tema para tramagens políticas importantes na história... você por acaso já ouviu falar na questão da “política do café-com-leite”, Clara? Uma espécie de acordo entre políticos de São Paulo (produtor de café) e de Minas Gerais (produtor de leite), para que a ordem de sucessão sempre acontecesse tendo como base o revesamento de líderes naturais destes estados. Um complô, na verdade, dos tempos da chamada República Velha. 

Café das manhãs, café das noites, café das tardes, este último sagrado lá em casa de meus pais, na Bahia chapadeira. Toda santa tarde, três ou quatro horas do tempo vespertino, lá estão meus pais a tomar suas xícaras de café acompanhadas de algum deguste leve. Café que nunca me foi a predileta das bebidas, mas que aprendi a apreciar em horas singulares da vida, como que a colocá-lo num canto especial de mim. Café que nos aproxima, café que um dia, quiçá, tomaremos juntos numa praça aberta ao céu das eternidades memoriais.

Incrível é mesmo saber do poder que os meios de comunicação possuem já há anos e sempre, ver como chegam ao grande percentual populacional, e facilmente, as produções televisivas (principalmente) em solos europeus e africanos. Agora tudo interconectado, mundo global das redes de tv a cabo, dos fios ópticos, das ondas eletromagnéticas mil, da internet! 

Confesso a você minha surpresa, Clara, em suspeitar que temas bem próprios das gentes de cá a você parecem tão próximos em verdade. E é bem por aí mesmo as significações cangaço-sertanejas. Decerto que a história por detrás de toda esta ambientação factual vai bem além de nossas imaginações, sendo necessário de nossa parte grande e responsável aparato de leituras. O cangaço e toda a sua aura é um caldo apaixonante de mistérios, lendas e narrações. 

No cangaço, vida e morte que se conflagravam. O homem no meio do torvelinho. Personagens contraditórios, Lampião e Maria Bonita estão escritos para sempre no imaginário popular do Brasil, principalmente para as pessoas que habitam o nordeste brasileiro. Eles são, só para citar um exemplo, personagens vivíssimos dentro do que aqui conhecemos como Literatura de Cordel. Aqui mesmo em Caruaru, em terras de minhas atuais pegadas, em sua famosa feira já cantada e decantada pelo Rei do Baião, é comum encontrarmos folhetos de cordel que malinam com esta temática cangaceira e, por conseguinte, com seus principais condutores. Salve, salve, Maria Bonita! Salve, salve, Lampião – nosso Robin Hood, diriam alguns.

Pois este tão bonito explicar-se acerca da expressão “sempre a aviar” fez-me recordar agora uma de nossas atuais leitoras, também ansiosa pelo resumo. Ah, e a paixão pela vida, Clara! A paixão pela vida entrando por nossas veias! Como não se permitir chegar ao paraíso através da paixão, mesmo com a possibilidade das quedas?! Do vento sobre as rodas das motocicletas, estanco a parola nessa nossa inconstância de ser-no-mundo: amantes que somos, amadores que somos, até o dia final. 

Você me acerta em cheio, Clara. Mas há impérios que me movimentam em cujo silêncio austero prefiro resguardá-los. São coisas nossas, que nos animam e que nos entristecem, como as distâncias, como as impossibilidades momentâneas, como os entraves múltiplos do dia a dia, mas que invariavelmente nos fazem rumar ao desconhecido, para as frentes de batalha. 

O amor, Clara, se é que isto lhe servirá de dica, o amor é o que conturba as minhas vistas dos agoras. Mas o amor possui tantas facetas, não é mesmo, querida? O amor é tão grande, mas tão grande e tão incontestável em suas multidireções, que por vezes não cabe no peito e vaza e rompe as nossas manhãs de paz, fazendo-me brincar de esconde-esconde ou pega-pega comigo mesmo. O amor, enfim, esta una espécie de Deus! Deixemos para lá, por agora, já que estou mais sereno. A paz abraçou-me novamente, mas como tudo na vida, pode não durar tanto e regressar. 

O que é o Amor, Clara?

Ontem, dia-rock, foi dia de renascer em nova idade. Cá estou, vivo. 

Um beijoceano e um carinho neste frio dia. Até mais ver!

Caruaru-PE, Pernambuco de Gilberto Freyre, 14 de julho de 2015.



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Clara e Viana são dois amigos de longa data que se redescobrem e desenham o mundo à sua volta pelas palavras que encontram, que constroem e que usam para pintá-lo. (De longa data em face da finitude da vida, recentes diante da imensidão da eternidade). Mas, que importa isso? Eles propõem-se descobrir dois universos complementares, sem artifícios nem maquilhagem, para além das máscaras habituais, as que protegem o ser humano da solidão e das agressões.

Clara e Viana são dois heterónimos, duas personagens que ganham vida através do tempo, do ritmo da palavra e do sabor dos respectivos sotaques.

Luísa Fresta e Germano Xavier dão vida a este projecto.
* Imagens de Cristina Seixas.

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