sábado, 30 de maio de 2015

Entre Mares e Marés: Conversas Epistolares (Parte III)

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Querido amigo,

Gosto de receber as tuas cartas, digeri-las e pensar nas coisas insólitas que contas, responder sem a pressão do diálogo. Esta nossa conversa permite uma doce preguiça pelo meio e as respostas já incluem outras tantas perguntas.

Então, deixa-me contar-te a minha realidade, não aquela que é factual, mas a que recordo (julgo que era assim que García Márquez entendia a vida, e é uma ideia que faz sentido para mim).

Primeiro: Os Kassav, essa banda fulgurante das Antilhas francesas, que popularizou o ritmo Zouk. O Zouk para mim tem cheiro de adolescência, perdi e ganhei noites inteiras em França a dançar esse ritmo, que ecoa como os batimentos cardíacos. O passo é fácil, é uma cadência a dois tempos, perna esquerda, perna direita, um leve rebolar e o resto é deixar fluir. (Ainda bem que nenhum músico ou bailarino lê as nossas cartas, caso contrário estava perdida com esta descrição tão básica!). Mas enfim, o Zouk, cantado em crioulo das Antilhas (de base francesa), como te disse, é um dos meus ritmos de eleição para dançar. Encontrar essa banda 30 anos depois em Lisboa, tem um gosto especial para mim. Não sou de ir a concertos, dispenso aquela energia brutal que se gera entre as pessoas, o som por vezes demasiado alto, as longas filas de pé, para além dos preços proibitivos. Mas aqui abri uma exceção e atrevi-me. Revi aqueles músicos, hoje já meninos e meninas de mais de 70, mas com o mesmo vigor na voz e nas pernas. A música deve ser mesmo o elixir da eterna juventude! Descadeirei-me toda, arrastando a família comigo, ou, como diz a querida amiga Cristina, “esbaldeirei-me” toda. (Mas creio que ainda assim mantive alguma classe, espero ter conseguido pelo menos parecê-lo…).

E sobre o amor pela distância, a descoberta do “outro”, falo-te na língua que estou a aprender: o crioulo cabo-verdiano. Às tantas já o tinhas intuído, sei que as tuas anteninhas captam tudo. Eu conhecia já a língua informalmente, que alguns, há décadas atrás, chamavam dialeto. Diz-me tu, que és especialista, qual a diferença entre um e outro, pois eu tenho uma noção pouco fundamentada. Em todo o caso estou a aprender essa língua, cheia de sabor e de história, olhando sobretudo para duas das principais variantes. Mas o processo não é simples (a aprendizagem), pois apesar de ter uma base lexical portuguesa, a sintaxe tem uma filosofia bem distinta. Verbos que não se declinam, regras de plurais e de marcação de género diferentes, toda uma estrutura que nos é estranha. Não se pode aprender esta língua, nem outra, sem se perceber um pouco da cultura dos falantes. São coisas indissociáveis. A noção do tempo e do espaço são diferentes – e isso reflete-se nos demonstrativos e nos tempos verbais. É uma língua com economia de recursos, nascida da necessidade de comunicação entre escravos e escravocratas e portanto iminentemente prática. No entanto possui um lirismo intrínseco e uma inesperada subtileza, que faz com que tenha uma poesia riquíssima; e disso são exemplo os vários autores que desde tempos remotos optaram por produzir poesia em cabo-verdiano, e as letras das mornas, que muitos dizem ter alguma influência do fado, mas com matizes tropicais e dançável.

Há uma história engraçada que um amigo contou. Ele, que também aprendeu a língua como nós, quis uma vez usar uma expressão muito da terra, viajando num híbrido entre autocarro e táxi (também os há em Angola e lá chamamos-lhes “candongueiros”). São carrinhas tipo Hiace que às vezes param onde o cliente pede…então o amigo pediu de repente para parar “ali mesmo”, usando a frase “pára li-simsim”, mas o motorista respondeu-lhe com um berro dizendo que ali não podia parar. O que prova que dominar a língua nem sempre é suficiente para comunicar. O meu amigo ficou frustrado por ter usado tão bem uma expressão recém-aprendida, porém sem resultados práticos!

Então, acho que agora percebes porque este país e estas gentes me estão a apaixonar. É um povo lusófono, como nós, mas com fortes influências da francofonia pela situação geográfica do arquipélago. Ainda ontem, numa festa de Cabo Verde, em que se inaugurou uma exposição sobre a morna, que é candidata a património imaterial da humanidade, alguém me perguntou de que ilha eu era. Achei lindo, porque, na verdade, todos nós vivemos um pouco numa ilha, não é? Nessa mesma festa, com cachupa saborosa e muita música, vi uma senhora madura, um pouco mais do que eu, até, dançar como uma possuída, sexy e solta, junto a um virtuoso da guitarra, dando-lhe todos os motivos e mais alguns para que ele protagonizasse um solo inesquecível só para ela. Ele fê-lo com naturalidade, mas eu assisti àquela cena encantada, e, confesso, um tanto surpresa. Percebi que a sensualidade não tem idade, a pessoa é sensual enquanto tiver prazer por viver. E só.

Mas, Viana, deixa-me responder-te antes que me perca em divagações, tu conheces-me, eu voo longe e alto e depois nem sempre encontro o caminho de volta. 

Aqui tens o endereço das nuvens, se é que as nuvens têm morada (Cloud Appreciation Society): https://cloudappreciationsociety.org/ (se não encontrares é porque as nuvens se foram daí com uma golpada de vento!). Abres o site encontras esta frase inspiradora: CLOUD LOVERS, UNITE! Bela mensagem de boas-vindas, não achas?

Quanto à tua ideia da Igreja Literária de Todos os Dias, acho-a uma das utopias mais bonitas jamais sonhadas. Acrescenta aí Cortázar, Erico Veríssimo, Jorge Amado, Pepetela, Sepúlveda, Camus… arranjaremos funções para todos, para os que cá estão e para os que já se foram mas nos deixaram a palavra escrita. Como dizes, brincando, e brincando eu também, a literatura realmente não leva a lugar nenhum: só mesmo ao insondável caminho da nossa alma, através das viagens alheias e outras formas de perceber sentimentos, lugares e vivências que desconhecíamos. Leva-nos a Macondo, leva-nos à América Latina, à África, ao interior da Bahia, à Europa entre guerras e ao coração da América. Leva-nos a atravessar tempos recriados pela ficção e ancorados na História. Tirando isso, não leva mesmo a lugar nenhum, mas para nós que amamos as histórias, essa é uma viagem que não dispensamos, até fim do mundo e ao princípio dos tempos.

Falando de estereótipos, e de como somos fantasiados pelos outros, é um tema engraçado e inesgotável, sim. Antes dizia-se que Portugal era o país de futebol, Fátima e fado. Não tenho nada contra nenhum dos três mas é claro que essa visão incomoda. Coletivamente continuamos a estar muito associados a isso, pessoalmente tenho outras preferências. E o Brasil, para nós, era um pouco a imagem do samba, do futebol e também o país das telenovelas. Uma visão igualmente asfixiante, sabemos que não é assim, que os brasileiros têm a capacidade de indignar-se e de reclamar os seus direitos, de ter um papel social relevante e interventivo, como nós, aqui em Portugal. Nem sempre os resultados são imediatos mas enfiar a cabeça na areia não é solução. Talvez o modelo de greves e manifestações constantes esteja um pouco esgotado. Talvez tenhamos que encontrar outras formas de pressão e de cidadania, o que não é de todo fácil. Ainda sobre o Brasil, associo também o teu país à literatura, música e gastronomia de exceção. A uma grande criatividade e dinamismo cultural, a espontaneidade e um certo positivismo. Sei que são igualmente estereótipos, baseados nas minhas experiências. E depois, não se pode generalizar e reduzir um povo dessa dimensão a três ou quatro ideias feitas. 

Nós, em Portugal, somos também um país de poetas, como se diz. E de gente amigável e acolhedora, um país de céu azul imenso e com uma luz única. Contudo, com uma certa tendência para a saudade, uma coisa que corrói os ossos e tolhe os movimentos, mas também que impregna o fado dessa beleza que lhe dá um brilho único.

Agora deixa-me dizer-te que eu quero conhecer o trabalho dessa menina, a jornalista paraíbana. Quero ver o céu pelos olhos dela. Lembro-me de algo meio estúpido mas relacionado com nuvens também: quando o Clinton esteve cá em Portugal, há anos atrás, dizia-se que ele também adorava olhar o céu, azul, límpido e que se esquecia de olhar para o chão, onde os cocós de cão o fizeram escorregar mais do que uma vez. Não fora a rápida ação dos guarda-costas, teríamos tido provavelmente alguns constrangimentos diplomáticos…

Ah, Viana, aquilo de “encostar à berma”, é só estacionar mesmo juntinho ao passeio ou à berma da estrada, para não atrapalhar o trânsito. Vês? É como diz uma amiga angolana: tudo nos une, exceto a língua!

Uma menina dizia-me ontem que “isto das cartas” é vintage, é retro. Escaqueirei-me (isso existe?) de tanto rir. Eu disse: menina, eu não sou vintage, nem retro, sou só uma pessoa normal que transporta as suas vivências, e não comecei a viver hoje, mas há 50 anos atrás. Tive gira-discos, usei calças à boca-de-sino e penteados foleiros, camisas com chumaços nos ombros, nos anos 80, fui fã do Georges Michael, do Lionel Ritchie e do Michael Jackson, da Sade Adu e da Basia, que continuo a adorar. Isso é ser vintage? Acabámos as duas numa enorme gargalhada.

Agora eu vou, mas eu volto.

E fico com essa alegria imensa da espera.

Um beijo,
Clara.

Lisboa, 24 de maio de 2015


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Estimada Clara,

Para tudo um tempo é necessário. Sabemos. Tempo para o sim e tempo para o não, tempo para o certo e o errado, tempo para a criação e o descanso, tempo para refazer o próprio tempo, repensá-lo, para redistribui-lo, reafirmá-lo em nós e nos outros, tempo para o inverno que faz agora nascer de verdade nas terras de meu sertão, aqui no país de Luiz Gonzaga – pai musical das mitologias sertanejo-nordestinas -, de chuvas grossas e rápidas, de molhar pouco o solo, de gerar nos corações uma esperança de para-sempres. 

Por falar nisto, Clara, você sabia que algumas das maiores tradições do nordeste brasileiro, até os dias de hoje, vivenciadas principalmente no período do São João, possuem em sua maioria raízes aí em Portugal? Parece óbvio isto, mas não me custa nada a elaboração desta perguntinha tão básica. Quanta boniteza possuem as quadrilhas, os maracatus, o forró, os festejos de máscara...

Você me fala em referências musicais no ligar os dias de sua adolescência, e eu termino por entrar em minhas memórias mais ancestrais, Clara... Liguei o computador e fiz buscas sobre o Zouk e... mesmo!, como é dançante! Pulsos em acordes. Em casa na cidade baiana de Iraquara, quando pequeno, era parca a incidência musical no lar. Eu que vivia fuçando o pouco material de que dispúnhamos. Meu pai tinha uma pequena coleção de vinis, mas nada muito significante. No mais das capas, viam-se as dedicatórias em direção à Irlan, minha mãe. Portanto, já imaginas... eram discos de músicos românticos, cantores dos mais variados tipos de amor, se assim posso lhe dizer, comprados mais para o sentido do presentar que realmente para o sentido pleno do deslumbre musical. Todavia, no meio de todos aqueles exemplares de LPs, havia os de Luiz Gonzaga. Eram muitos. Meu pai, pernambucano que é, nunca deixou de expressar seu gosto para com a música deste incrível cantador brasileiro, que carregou todas as marcas de um povo em sua voz de baião, e de Rei! Já ouviu falar no “véi Lua”, filho de Seu Januário da sanfona de oito baixos?

A sua descrição acerca do Zouk foi bastante legítima e me fez contemplá-lo mentalmente de uma forma muito bonita, a ponto de senti-lo em inteirezas de espírito. Prometo que vou continuar a escutá-lo, sempre que puder usufruir de um tempinho para os ouvidos de arte. Enfim, como eu ia lhe dizendo, a música só me chegou com mais força lá para os meus 14 ou 15 anos, quando comecei a valorizar mais esta expressão artística. Foi quando passei a escutar bandas formadoras de meus passos como Legião Urbana, Titãs, The Beatles, Paralamas do Sucesso, assim como nomes do naipe de Bob Marley etc, só para citar alguns. A região onde nasci, a Chapada Diamantina, centro geodésico da Bahia, por ser ponto turístico mundial devido aos seus incontáveis mananciais naturais, sempre convidou a homens e mulheres ligados ao viver da-e-para a natureza, e o Reggae sempre esteve presente como um ritmo muito vivo por lá. O entendimento acerca de tal relação é mais que evidente para nós, não?

Lindo é saber que estás a se cabo-verdear na alma, Clara! Riqueza inconteste será a de se suspeitar sabedora de uma nova ferramenta de imersão numa toda-humanidade diversa, línguas que nos abrem mais para os mundos do mundo. Imagino daqui quantas coisas novas você está a descobrir! Sobre a sua questão, querida, e numa abordagem um tanto que geral, também, pensemos os dialetos como as “línguas” de uma língua-mor, isto é, as variantes de uma língua, que se legitimam através de estruturas político-ideológicas, socioculturais e além. O dialeto não tem status de constructo linguístico principal, sendo, portanto, um modelo de uso de língua que determina certa porção de usuários da língua, com seus apropriados recursos e processos linguísticos, mas nunca se desvincilhando de um modelo de língua maior, a língua oficial em si. Se hoje, no caso citado por você, já não mais a consideram como a um dialeto, creio que deva ser pelo fato de o crioulo cabo-verdiano ter conquistado espaço entre os falantes/usuários da língua e se tornado, em alguma esfera do tempo, a base da comunicação deste país/povo. Teria isto acontecido em Cabo Verde, Clara? Pelo pouco que sei destas longas terras daí, a tendência é a de este pensar nos ser plausível. Se não, deveremos pensar esta troca de nomenclaturas sob outro ângulo, num averiguar mais amplo e minimalista.

Seu amigo, o que lhe contou a situação embaraçosa, é prova viva de que a língua é uma unidade dinâmica, nunca estanque, que serpenteia por toda a sua existência tal qual um réptil a trocar de pele. E como é perfeito este ajustar-se eterno em base das novas demandas e funções sociais e de referências dos segmentos linguísticos frente ao caminhar da humanidade! A gente poderia ficar aqui citando situações semelhantes por páginas e mais páginas e jamais nos perceberíamos perto do esgotamento das ideias afins.

Sabe, Clara, eu sempre achei que pessoas não são feitas de idades. Como distinguir um velho de um jovem? Pelo corpo mais ou menos rijo, apenas? E as nossas tantas outras características humano-espirituais, não valem? E as mulheres, então, são tão mais fortes que nós, homens, que não combinam mesmo com este sistema de datação que nos empregaram à força não sei de quê. Mulheres são dançarinas, flutuam, jamais envelhecem. Mulheres são árvores imortais, balouçam ao sabor dos ventos, dão frutos até em épocas impróprias, verdejam a Terra, cobrem os recantos de amor. Infeliz a mulher que pensa no envelhecer assim, desta forma tão-sem, sem saber que no fundo seus olhos serão e são os mesmos de quando inocente criança. Tenho flashes memorias de pessoas que me espetacularizaram em algum momento através de dançares de vida nestes bailes de dias vividos nos até-aqui por mim. Pessoas até bem próximas, sim. Fico bestificado também, observando, energizando o instante de poesia.

E vamos apreciar nuvens! Obrigado pelos endereçamentos de contemplação, Clara!

Eu sou um homem que não aprendeu, ainda, a enxergar facilmente a beleza na alegria dispersa, Clara. Prefiro mil vezes um silêncio adornado entre névoas, um instante de paz febril no cobertor das ânsias negras, um momento de me perder entre penumbras, uma melancolia tinhosa, um apelo ao nostálgico símbolo das eras passadas, uma palavra velha bem dita por uma boca de amor com tons de carvalho. Certeza a de que eu amaria Portugal com todas as minhas forças. Eu aprecio muito os lugares carregados de abismo, assim como pessoas dotadas de precipícios. Outros países que gostaria de conhecer: Irlanda e Itália. Tenho para mim que um dia, sim. Afinal, eu ando construindo minha jangada de pescador desde que me sei por gente. Ir é só uma questão de fechar os olhos e fixar pés no chão.

Enfim, sobre suas pontuações, eu concordo piamente. Estereótipos são estéreis, infertilizam o real solo das implicaturas. Cada país é um universo, cada povo um exército de grandezas e feitos, cada região um mar de farturas e fraturas, cada atmosfera um ar para ser respirado com verdade. Portugal, para mim, é acima de tudo curiosidade. Ah, e a língua, heim, como pode ser de afastamentos! Dor dolorida, mas! Em caso nosso, particular, só de aproximações, para nossa graça!

No mais, Clara, é tum-tum mesmo, de coração. Hoje, aqui, na Caruaru de Nelson Barbalho, inicia-se um período de 30 dias de festas em devoção a São João. Muitos shows, mostras, vivências, tudo com gosto de quentão, licor, amendoim cozido e milho assado na fogueira. Escuto-vejo fogos de toda cor brilhando no céu citadino neste exato momento. Dizem que é o MAIOR SÃO JOÃO DO MUNDO! Eu até acredito, tamanha a dimensão dos pipocos celestiais. A cantora Elba Ramalho dará o tom da noite. Eu não vou para a abertura. Resolvi escrever esta cartinha para você.

Com um abraço, selo o produto da vez.
Até!

Terra de Caruaru, Pernambuco de Gilberto Freyre, Brasil, 30 de maio de 2015.

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Clara e Viana são dois amigos de longa data que se redescobrem e desenham o mundo à sua volta pelas palavras que encontram, que constroem e que usam para pintá-lo. (De longa data em face da finitude da vida, recentes diante da imensidão da eternidade). Mas, que importa isso? Eles propõem-se descobrir dois universos complementares, sem artifícios nem maquilhagem, para além das máscaras habituais, as que protegem o ser humano da solidão e das agressões.

Clara e Viana são dois heterónimos, duas personagens que ganham vida através do tempo, do ritmo da palavra e do sabor dos respectivos sotaques.

Luísa Fresta e Germano Xavier dão vida a este projecto.
* Imagens de Cristina Seixas.

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