domingo, 30 de dezembro de 2012

Educare & Comunicare


Por Germano Xavier

CITELLI, Adilson. Educação em tempo de comunicação. In: Comunicação e Educação - A linguagem em movimento. 3.ed. São Paulo: Senac, 2004.


Mais inteligente do que acreditar que o desenvolvimento cognitivo e social dos indivíduos, principalmente dos jovens, ocorre de maneira direta e lógica, profundamente associada ao comportamento de cada pessoa, seria pensarmos que todo esse processo de crescimento está intimamente ligado a diversificados fatores, a tomar como exemplo a família, a escola, os amigos, entre outros, jamais "culpando" a influência unidirecional pelo exercício "único e individual" referente à formação de hábitos socialmente negativos ou positivos. É o que pensa Citelli, doutor em letras e professor livre-docente da Escola de Comunicações e Artes da USP, uma referência no assunto, ao discutir as possíveis intensidades mediadoras dos meios de comunicação, com um enfoque na mídia televisiva.

Citelli ainda explica que as diferentes mídias, as quais dá o nome de "escolas paralelas", levando-se em consideração tanto o aparelho físico quanto o imaterial/virtual (computador/ciberespaço), estão entrando em choque direto com o atual sistema educacional, exigindo dele uma nova metodologia para a efetuação de sua prática e compreensão dentro do próprio ambiente escolar. E é sobre esse embate, ou melhor, sobre esse diálogo quase que obrigatório entre os elementos da comunicação e da educação que o autor discorre seus argumentos, sempre apontando para as recentes diretrizes e descobertas desse novo campo de intervenção social: a educomunicação.

Uma aproximação que tem o seu caráter histórico e social. Num mundo globalizado, tecnologizado, informatizado, dotado de ferramentas comunicacionais/informacionais instantâneas, não haveria lógica ou razão para não percebermos uma demanda fortíssima frente à união desses dois segmentos, posto que os modelos e requisitos gerenciais da sociedade também evoluíram, impondo ao homem novas necessidades e habilidades. Isso porque é na sala de aula, local de "conflitos positivos" das mídias, onde se pretende o melhor aproveitamento do mecanismo da interdiscussão, sob diferentes prismas e registros, no intuito de resignificar códigos múltiplos recebidos a todo momento.

A escola redesenhada para as novas preocupações da comunidade, capaz de funcionar de maneira mais flexível, construindo um compromisso com as novas realidades, preocupada em revelar os melhores caminhos para a construção do conhecimento em cada indivíduo, despertando o senso crítico e visão mais acurada sobre os acontecimentos que o rodeia é, sem dúvida, o objetivo maior dessa zona de interferência educomunicativa. Para isso, segundo Citelli, é preciso reconhecer, em primeira instância, a possibilidade de trânsito de significações que entram em circulação social fluindo dos mecanismos midiáticos para as salas de aula, e vice-versa. Assim, buscando tornar a educomunicação mais aprazível e simples, novos quadros indicativos de progresso tenderão a vir à tona.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Haicai de despedida (por um 2013 de muita poesia)


Por Germano Xavier

finado dois mil e doze,
na dobradura do destino (vês?)
um ano de fim treze vem tinindo...



Um grande abraço, bucaneiros e bucaneiras!
Muita poesia e muita literatura em 2013, para todos.
A gente se vê logo mais!

ATT. 
GERMANO XAVIER

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Haicai para Canô


Por Germano Xavier

Dona Canô,
Dona Canô (canário da terra),
enfim se encantou!



P.S. Por duas vezes fui em Santo Amaro da Purificação-BA no ano de 2010/2011. A primeira estive somente de passagem, conhecendo a região do Recôncavo Baiano. Na segunda vez que fui eu tinha umas perguntas preparadas num velho caderninho para uma possível entrevista com Dona Canô, em sua casa, sempre aberta às pessoas que por lá aparecem. Mas quando lá estive, fui avisado de que ela não se encontrava na cidade. Guardei as cores da casa e o ar que Dona Canô respirava. Um dia ainda faço essa entrevista com ela, sei disso...

Cantares de preservo


Por Germano Xavier

Para Alan Sillitoe,
porque poetas nunca morrem.


II

E o que jamais teria fim eu amaria.
Eu amaria o que não é término
e o dia de vermelho no sopé,
deitado sobre a serra o verde afoito
dos meus olhos, ao longe, como escuros
acostumados ao que fizemos.

O que guardo é o peso das coisas,
aquele silêncio nunca existido em nada:
a palidez que diz a vergonha das coisas,
o ferimento largo das coisas finas,
a catástrofe do existir das coisas mortas,
a mudez aguda das coisas que falam,
o fósforo que não acende a luz das coisas
sem luz, a ignorância das coisas
que se sabem, seus resíduos de coisas
dormidas nas despensas das casas.

Não guardo a infeliz velocidade das coisas nem seus argumentos de ir.
Não aguardo a coisa que muda o destino das coisas – posto imutáveis!
Aguardo apenas o meu aguardar, que é também o aguardar das coisas.
(Tempo-aquário e o tempo borbulhando preso...)

Eu guardo a água das coisas, a terra das coisas, o ar das coisas –

O fogo.

A cor


Por Germano Xavier


Poema escrito durante a Oficina Literária "Memória, Poesia e Cidade",
produzida e ministrada por Thiago Medeiros.



o engenho de Cinésio
me alertava sobre
os poros

ali
no alto
o vermelho-ocre
do solo de minha Iraquara

pintava-me
a envergadura do Tempo
largos braços
abertos e sem fim

sem mim


domingo, 23 de dezembro de 2012

O que você vai dar de presente neste Natal?


Por Germano Xavier

Uma boneca de olhos azuis que repete frases mecânicas em inglês para o seu sobrinho também ultramoderno? Uma caixa de chocolates de diferentes países para o marido chocólatra e alcoólatra? Uma passagem para o mais novo país da moda no Leste da Europa? A velha e boa blusa 100% algodão para o irmão mais velho que não esteve nem aí para você durante todo ano que está findando? Ou você não está podendo fazer escolhas tão apuradas assim neste fim de ano? Faltou organização com as finanças? Faltou sorte com os novos investimentos? Faltou poupar mais? Faltou trabalhar e se dedicar mais? Faltou ter mais paciência e não agir tão impulsivamente? Faltou olhar mais para si? Ou faltou faltar alguma coisa para que você pudesse perceber que tudo está dentro da normalidade e na ordem do dia? A democracia é isso (ou não?), temos tudo nas mãos, uma gama infindável de escolhas, um mundo inteiro parece se mover aos nossos mínimos comandos, e ao mesmo tempo temos a impressão de que nada temos e de que nada somos, posto que tudo está em falta, principalmente nas gôndolas do Ser. Todavia, não faltam superlojas e supermercados nas supercidades, não faltam super-homens nos campos da mídia a nos avisar que basta um cartão de crédito dentro de nossas carteiras para termos superpoderes e superdestinos. Estaríamos vivenciando o supercapitalismo, onde todo mundo é rei e bobo da corte ao mesmo tempo? Creio que não há dúvidas. Todo mundo entre aspas, convenhamos. Porque quem é rei de verdade nunca perde a majestade, não é verdade? Nessa humanidade, vamos lá, 10% são reis de verdade, o restante não passa de um bando de bobos da corte, fazendo o que os reis investidores de Wall Street ou manda-chuvas de Brasília & Cia ou celebridades do Fantástico Mundo da Fama mandam e desmandam em nossos corações e mentes. O sino pequenino já vem batendo e apontando um novo ano em nossa frente, mas antes das luzes das inúmeras e reluzentes árvores natalinas serem acesas em sua totalidade, eu quero insistir neste questionamento: O que você vai dar de presente de Natal no Natal? Como todo bom velho ditado que vai sendo transportado pelo tempo geração após geração, dizem que quem dá também gosta de receber (não pense bobagens, por favor, o assunto é sério), estou errado? Apesar de parecer, até porque não gostamos de pensar em nossos mais reles atos, esta não é uma simples questão. Presentear não é uma atitude destituída de sentido ou algo sem significado. Pelo contrário, presentear é ceder algo em acréscimo a outrem, ou pelo menos deveria ser visto dessa forma. O presenteado, por sua vez, quando ganha o presente, ressignifica-o, dentro de suas possibilidades de compreensão e elaboração sígnico-real, num gesto quase que automático, num evento de abertura e nunca de fechamento ao novo. O outro que recebe, destarte, passa a acessar um conjunto de possibilidades que antes, sem o objeto ganhado, o carinho recebido ou o afeto compartilhado, não seria capaz de sentir e viver naquele justo instante. Portanto, se você não conseguia ver o seu bonito gesto com tamanha amplitude, peço mais atenção da próxima vez em que você for escolher um presente, seja ele qual for e para quem for e em que época do ano estiver. A gente cansa de pedir coisas, reclamar por outras, e termina por não oferecer ao mundo nada para que o tão sonhado “mundo melhor e mais justo” de que tanto almejamos realmente possa ultrapassar a barreira das utopias. Dia desses, conversando com uma amiga, perguntei o que era que ainda podia ser feito para que pudéssemos mudar o mundo, mesmo que poucamente, ou simplesmente o que poderíamos fazer para que nossas ações não passassem em branco durante a vida, sem nada ter deixado de bom para o próprio mundo, e eis que ela me respondeu com algo muito simples e lógico, e não menos inteligentíssimo: “Fazendo com que os pais eduquem e criem os filhos para serem pessoas generosas, menos egoístas, mais amáveis, mais "humanas"... aí sim o mundo poderá ser menos cruel. Deixar filhos melhores para o mundo ao invés de pedir um mundo melhor para os filhos...”, foi a resposta. Curta, grossa, direta, praticável, possível. Talvez seja este o caminho para o tão distante “mundo melhor e mais justo” de nossos sonhos. Ou, quiçá, um dos caminhos para tal. Deixar filhos mais dignos e sabedores das essenciais práticas humanas talvez seja mesmo uma fórmula infalível para derrotar tanta desigualdade e mau-caratismo que muito assola e contamina o nosso planeta. Aí eu pergunto a você novamente, querido leitor, que presente é este capaz de atingir o brio de um ser humano e provocar nele reformas interiores tão profundas que até o que tende a vazar de si após seu usufruto pode revolucionar o próximo? Muitos podem citar, e sabiamente até, o amor, o carinho, a gratidão, o respeito, o apoio, a perseverança, a humildade, entre tantos outros sentimentos que, querendo ou não, são primordiais para o bom encaminhar de uma pessoa perante o desenrolar da vida. Mas, e no campo do material, que objeto teria este mesmo papel? Não fique triste se você não sabe a resposta ou não conseguiu pensar em nada plausível, a realidade brasileira (não seria mundial?) ainda impede a visão clara de tal fato. É do livro que estou a falar. Não há objeto mais completo que um bom livro, assim como não há atitude mais transgressora que uma boa leitura (corrijam-me se eu estiver errado, por favor). Eu sei, você pode não gostar tanto assim de ler, eu entendo, mas não custa nada insistir um pouco nisso. Quem sabe depois de um ou dois livros realmente especiais você não se torne um leitor voraz de palavras e mundos também inesgotáveis e acabe mudando de ideia .. Um bom livro impede a operância na gente da pior das pobrezas, a da alma. Um bom livro oculta inverdades e desenforma certezas. Um bom livro ensina a andar, a falar, a agir. Um bom livro cura uma doença. Um bom livro faz um morto ressuscitar. Não acredita? Eu entendo. Eu posso estar sendo meio romântico demais, mas pense bem, depois de saciadas nossas fomes físicas, é o estômago de nossas almas que necessita de alimento. E isso, um bom livro pode resolver facilmente. Então, você já decidiu que presente vai dar àquela pessoa especial neste Natal? Não? Tudo bem, ainda dá tempo de fazer sua escolha.

Ledo engano


Por Germano Xavier

para Lêdo Ivo, in memoriam.


consternadas vozes
bardos chorando bardos
seres de morte? ledo engano

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Casa de brincar


Por Germano Xavier

Uma casa é
daquela do Vinícius,
daquela do Vilaró.

Uma casa de sem-feitas
paredes,
chãos,
pelos cotovelos...

Que caminha com a gente,
quando a gente brinca de se esconder
da gente mesmo,
dos nossos vazios...

Quando eu for gente,
vou construir uma para mim:
casa de nada-tudo,
casa de bem-viver.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Pensamento chão


Por Germano Xavier

um pós-tudo a partir do livro Pensamento Chão, de Viviane Mosé.

Viviane Mosé não é bem uma poeta, é antes de tudo uma psicóloga e psicanalista. Mosé não é bem uma psicóloga nem uma psicanalista, é antes de mais nada uma poeta. Mosé pensa. Pensa e escreve. Desta ação, nasce o pensamento chão. Pensamento chão é um fino recorte úmido de cortes transversais do olhar, dos olhares. O chão é o dia, é a noite, é a tarde, é principalmente o delírio da liberdade: o acaso. Momento. Momento é uma pausa, mesmo andando, mesmo correndo, mesmo fugindo, momento é uma espera e toda espera é um acontecer maciço.

Mosé chão. Mosé voo. Altura é um troço que nasce de baixo para cima. A impressão é que o livro das perguntas fora inventado. Perguntas em formas de poema. Nado. Todo mergulho é uma forma de chão. Mosé abre o livro com uma citação do velho e cego e ciclope Borges, pois todo instante carrega uma bomba oculta, uma explosão esquecida ou simplesmente desamparada.

Mosé mata a palavra para só deixar as coisas de dentro dela: a larva da palavra, a alma, o chão. Poemas nucléolos. Poema em prosa-semente. O que nasce daí? Uma ilusão de que toda vida é uma completude. Nada disso. Precisamos renascer, dia após dia. Somos incontáveis. Preciso é habitar o sorriso, o medo, a luz, o coração, a amplidão, a parte, o aqui, a cor, o rumor, o miolo, a goela, o ser, o sossego, o choro, a calma, o utensílio, a roupa, o perfume, o aço, o espaço, o calço, a pedra, a rachadura, a fechadura, a ferradura, o mole, o gozo principalmente, o gozo.

Eu li Mosé, mas não sei o que li. Li PENSAMENTO CHÃO, em verso e prosa, fui plantado junto, aguado, regado, molhado, ungido. Estou mais vivo depois. Não sei explicar. Só sei que amo a poesia. Ainda mais agora. Sou mais. Sou menos. Sou mais. Sou chão. Sou pensamento. "meus sons são meus sins". Fui aberto, redescoberto, coberto. Mosé-fenda. "vida arte vida arde". Eu sou assim. Tenho medo do escuro.

Aprendi que chão é sol
e que criança nunca morre.

Alguém atrás da porta


Por Germano Xavier

Está em seu quarto agora, descansada, enquanto eles prosseguem burilando dentro dela sons arredondados e orbiculares. Ela sabe que os plurais possuem um grito gris de horror. O abajur aceso do lado esquerdo do quarto fabrica uma penumbra que toma conta do quarto inteiro. Livros adormecidos na prateleira de mármore, o anzol decorativo pendurado no molho de chaves, sapatos emparelhados no criado-mudo. Achava que livros sempre traziam a verdade mais pura, que um ou outro dia precisaria de um anzol para uma pesca dominical, que chaves eram objetos que davam sorte. Estava tentando ultrapassar a décima quinta página do livro estrangeiro que segurava em uma das mãos, mas a noite por vezes é um telhado escarpado de símbolos execráveis.

Aquele dia havia transformado para sempre a vida de Catarina. Uma manhã caiada, retangular, mas improvavelmente árida. Menina doce, criada a mel e pão de casa, parecia ser sempre uma menina doce e criada a mel e pão de casa. Difícil era ver Catarina esbravejando temporalidades comportamentais. A família estava normal, com todos os seus integrantes em perfeita harmonia. O cão Bosco, a gatinha Lili, Mario, seu sobrinho de dois anos, seu quinhão na loja de conveniência do posto Dois Irmãos, sua caneca de café, com a qual tomava desde água até os insossos chás gelados. Normal e silencioso era o seu tempo.

Estando lá, acobertada até a altura dos seios por um casaco puído, Catarina olha incidentalmente para a fechadura na porta do seu quarto. Roupas ensebadas estão penduradas numa espécie de cabide do lado de dentro, do lado onde ela está. Há uma blusa cor de rosa e um bolero felpudo na cor preta que usara no último sábado. Havia um efeito pernicioso em perscrutar aquela aparentemente inofensiva fechadura de metal. Mas uma resistência quase estóica lhe dificultava a antevisão de outras formas. Como que num esboço de algum presságio, o olhar de Catarina seguiu fitando vorazmente a imótua porta.

Apanágios foram escritos no amor das metáforas, e o silêncio era sua suave arma. Recebia os proventos daquela hora numa arribação da memória.

Lembrou do susto instantâneo, da quebra da monotonia daquele lugar.

- Tac, tac, tac – um barulho vindo do outro lado escondia em sua face alguma espécie de medo.

Rompantes, os segundos do relógio viram-se apressados, desassossegados. A menina sentiu-se usurpada por maledicências mil da imaginação. Pensou logo no pai tabelião, acostumado a tomar para si as dores do mundo e resolver impasses humanos e desumanos, na mãe dona de casa guerreira contemporânea, no irmãozinho poderoso na inteligência. Mas ela sabia que estava sozinha naquela sala escura. Imputada a fazer algo que destravasse a sua coragem corrompida, Catarina levantou-se claudicante.

Sentiu que não era hora para pensar em Ajax ou Perseu. Pensou no ovário das aves e na bonita utilidade do vôo.

- Bom alvitre, bom alvitre - sussurrou.

O estorvo era insolente. Ela, camalote indolente. Era quase o paroxismo.

Havia de agir de alguma maneira. Abster-se da ida, da luta, certamente não era uma boa escolha. Viu um biombo perdido no meio da saleta. Puxou para perto da porta a fazer dele uma escora de proteção. Na verdade tudo ali poderia suceder. Dois enormes maços de papel mata-borrão também lhe serviram de suporte. As condições eram tácitas, o nervosismo dispéptico, o assombro real.

- Tac, tac, tac – novamente o ruído, agora mais rápido e forte como uma viva alma com pressa para com a ação de abrir.

Catarina calhou de ir mais à frente, para bem perto da porta. Era de uma madeira escura, trabalhada com formas antigas e rústica como qualquer objeto com mais de um século de feito. Na sala, os escaninhos eram fundos. Aliada a sua combalida altivez, enxotada por uma espécie de consternação que lhe feria a vontade, Catarina empertigou-se, dizendo:

- Quem está aí? O que deseja?

Seria ali o seu patíbulo, lugar de sua morte? Catarina, tão doce, tão crassamente dulcífica, vitimária de um outro que ela ainda não o sabe? Tão apolineamente linda e castigada pelo nada? Que tipo de anagrama era aquele em que estava agora metida?

Litografia. Hipogeu. A sala escura. Inconábulo do mundo. Alguém atrás da porta.

Aproximou-se, contributa à fulgurativação do seu medo. E depois de alguns instantes escutando o som cessado, atirou as vistas na direção do estranho.

Baixéis negros. Arrabalde menoscabo. Não havia vulto, sombra que fosse, só a percepção de que do outro lado a luz existia.

Prospectivamente, Catarina continuou. E imaginou que via tudo, absolutamente. Seus olhos nunca haviam lhe deturpado visagens. Acossou o desconhecido, sem dar chance à liberdade dos ventos do externo. Último plano era abrir a porta, último. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, tijolo duro.

- Sete palmos de terra, não há nada nem ninguém atrás desta porta – proferiu nubladamente. – Até quando me permitirei estar em laços irreais enrodilhada? Ah, minha cruz rúnica...

Que inabarcável teatro o de Catarina, perdida dentro de uma sala consigo mesma. Temente a si própria, incrédula de alguma força dêitica que pudesse uni-la à fortaleza de sua natural essência.

Ela com os olhos na fechadura, vendo a luz – Catarina enxergava? -, driblava as cercas de zimbro e as muralhas imperiais que lhe surgiam na fronte. Quando, certa de si, divisou o depauperamento de seus clamores. Olhou para o cós de sua calça e viu a chave.

Interressonâncias. Nume. A palavra lua.

Tenteia, prostra-se ao descerramento da barreira. Catarina tem a chave que faz falecer o outro, que assassina suas perspectivas sem claridade. Catarina tem o candor improviso, a degelada brunidura do dessilêncio.

Amava tanto o silêncio.

Ela está na pequena sala agora, cansada, enquanto eles prosseguem burilando dentro dela sons arredondados e orbiculares. Ela sabe que os plurais possuem um grito gris de horror. Recolheu a chave e a recolocou pendurada na calça. Estava tentando ultrapassar a décima quinta página do livro estrangeiro que segurava em uma das mãos, mas a noite por vezes é um telhado escarpado de símbolos execráveis – pensou.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Reinventando infâncias


Por Germano Xavier


A experiência de ler livros infantis quando você já não é mais tão infantil assim é uma verdadeira maravilha. Gostoso poder revisitar lugares por onde estivemos antes, quando o mundo parecia ser mais mágico do que é agora. Livros infantis, com todos os seus coloridos e encantos, podem fazer com que nos reencontremos com nós mesmos, podem fazer com que descubramos que ainda há tempo para ser o que de melhor fomos um dia ou simplesmente podem servir para que reaprendamos a transitar pelas estradas da vida com mais verdade na veia. Fim de 2012 chegando e eu resolvi usar estes últimos dias do ano para reler meus livros infantis. Hoje li "BALTAZAR E A CASA DOS ANIMAIS" e "BALTAZAR E A FESTA DE ANIVERSÁRIO", de Emma Kelly e Marie-Hélène Place, com ilustrações de Caroline Fontaine-Riquier, livrinhos com mensagens brilhantes. Salve, salve!

sábado, 15 de dezembro de 2012

Canto ao John


Por Germano Xavier

Imaginem um mundo azul e humano,
repleto de almas bem-aventuradas
que desejam os corpos, sempre,
e para sempre colados. Que, juntos,
idealizam a supernova estelar,
as constelações fulgurantes
e um planeta sem tróias.
Que sintam o flamejar dos pensamentos
numa acrópole moderna e colossal,
que vivam o gládio sobre os punhos
e a arma amante do amor.
Imaginem o abraço, o abrigo,
a foice que só corta para o bem.
Que queiram as crianças, a vida,
a estrada singela do coração.
Que tenham em cada rosto a precisão
e o enredo único do sentimento,
a suma forma de contágio
e o estágio luzidio da verdade.
Que naveguem no mar alto da imaginação
e que não enxerguem diferenças,
e que não enxerguem a beleza
na falsidade incólume e lisa,
e que cantem o canto mais lindo
para a pessoa presente ao lado;
e que amem o próximo, sua
menina sob todos os olhares,
e que sejam loucos ingleses - umas
ou algumas baratas tontas -,
sem vergonha da vida,
sem medos, sem rancores, sem nada;
e que tenham a vontade,
a inspiração vital pelo suspiroso
vento da alma, incorrigível,
que transcendam toda querença gamética,
que violem toda reprodução onírica de realidade.
Imaginem a avidez, a sagacidade,
a felicidade e a compaixão.
Pensem num mundo sem amarguras,
sem dores, sem esquinas, sem nãos.
Imaginem o meu e o nosso pensar,
no ato prático da purificação...

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Por uma semana


Por Germano Xavier

Para Iara Fernandes


"Por uma semana, não podia ver uma criança que me sentia como se tivesse perdido o filho que nunca teria. Eram meus os quatro filhos mortos neste acidente."
Excerto do conto SANGUE, de Miguel Sanches Neto.

Ao que se segue a anotação feita por Iara Fernandes, espremida no cantinho da página.

"E eu que perdi o que tive..."

então eu quero ser uma ponte
acondicionada sobre um leito aquoso
por onde rebentam peixinhos fosforescentes
que pulam e tentam um instante de voo

então eu quero ser um poente
dominado de uma vermelhidão celeste
capaz de encaminhar o horizonte para além
de nós mesmos carnes e só

então eu quero ser uma voz
para dizer que nunca perderemos nada
já que tudo se estreita em ausências ou não
páginas de uns dias melhores após outros

então eu quero ser uma escuta
piedosa enquanto pássaro se debatendo
pois mesmo na pré-morte do animal
uma poeira se levanta acalmando o caos

Os fantasmas ainda


Por Germano Xavier

XI

Não é de hoje que mantenho contato com os meus fantasmas. Apesar de estar aqui apenas de passagem, tenho tido profundas relações com meus espectros mais interiores e essenciais. Depois dessa, você deve estar a imaginar que não caibo na menor porção racional de qualquer ser humano esquizofrênico que, por uma via ou outra, constantemente fica a mercê dos navios estrangeiros que atracam durante a noite nestes portos sombrios. Portos dos disfarces.

Não, não pensem que eu sou um louco! Eu sou apenas uma criatura pseudestésica (já se esqueceu disso?!)... e que, apesar de tanto desprezo e desconsideração, segue acreditando na existência de “Mundos”. Há pouco tomei quase a metade de um “concentrado” que acabaram de lançar no mercado farmacêutico. Sabe como é, esta pós-modernidade de procriações e difusão de conhecimento em velocidades inenarráveis, que sempre deixa a própria espécie humana ainda mais perdida, presenteia-me neuroses...

Mas, voltando ao assunto...

Ah, os meus fantasmas!

Não era o do Fernando Sabino, mas não deixava de ser um encontro marcado. Isso, eram encontros marcados! E até hoje. Todo dia, quase sempre no mesmo horário, justamente após o primeiro despertar noturno. Eu já citei aqui, no texto de abertura desses relatos, que eu não consegui conjugar o verbo “dormir” durante toda a minha infância e adolescência. Quantas lembranças! Minha cabeça começa a doer só em imaginar pensamentos. Eu preciso da minha puçanga! Ultimamente, eu ando misturando alguns barbitúricos com ervas verdes que estou cultivando em minha pequena horta. Não suspeito aonde chego.

Sempre tive medo do escuro (esse sentimento vem diminuindo com o passar dos anos), e sempre tive o escuro como aliado. Quando cerrava os olhos durante a madrugada quase sempre fria da cidade onde eu nasci e morava, via sombras amorfas que atravessavam de lado a lado o vão do meu quarto. Pronto! Era hora de começar a transpirar, hora do coração pulsar freneticamente e de maneira desconjuntada, de levantar de súbito, escorando-me nas paredes, e hora de acender a lâmpada. E era sempre a mesma imagem. O meu irmão dormindo feito uma pedra no outro lado, nenhuma sombra, nenhum fantasma e eu, um garoto silente que não conseguia se encontrar. Talvez não fosse medo, mas sim uma vontade nata de enxergar as coisas como elas realmente deveriam ser, de exercer o papel fundamental da comunicação entre seres, sejam-os seres quaisquer, metafísicos ou reais. Talvez não fosse nada disso, mas a vontade de encontrar um amigo que me levasse para um lugar repleto de borboletas azuis e “pássaros coloridos”, bem longe. Isso eu bem queria, sempre quis.

Reminiscências eternas! E quantas!

Só restou a esperança, como sempre acontece depois que nos ocorre uma frustração. No meu caso, foi uma frustração de menino, feita de bolos confeitados e balas açucaradas, mas não deixavam de ser frustrações. Por vezes penso que os pais nem desconfiam, mas as crianças também sofrem com essas mascarras e falhas hodiernas, e acabam se tornando malogrados prematuros e indefesos (e é muito difícil encontrar psicotrópicos infantis).

Eu continuo o meu discurso: peguem as cordas! Vejam a liberdade! Eu sei da liberdade, eu sei! A liberdade está na corda! Eu sei de tudo que te fere. Acreditem em mim, acreditem! Eu não sou louco. Sou apenas um sonhador que acredita em “Mundos”. E não estou querendo criar confusão com nenhum de vocês.

O que eu quero é que vocês vivam, apenas isso.
E sirvam-se de seus pseudo-sumos, mas vivam!
Pai, perdoe a todos, pois eles não sabem o que fazem.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Uma história de amor


Por Germano Xavier

Sou um escritor e tenho uma boa e velha máquina de escrever. Salvo os escritores de antes da invenção, para mim todo e qualquer escritor deveria ter uma máquina de escrever. Escritor que não tem uma máquina de escrever não é escritor. Desculpe-me se estou sendo radical, mas é que estamos em agosto, que é mesmo um mês de muita agonia.

Sem querer enfeitar demais a minha crônica já iniciada, preciso dizer que é muito difícil precisar a data de nascimento desse invento. Mas fiquemos com o nome do inglês Henry Mills em nossa memória. Foi ele que, no ano de 1713, conquistou a primeira patente para um protótipo do objeto. Pellegrino Turri, italiano da mais alta sociedade, também corre por fora nesse dérbi. Em 1808 ele inventou um artefato de que só temos notícia hoje, devido às cartas que ele escreveu para uma amiga cega com quem se comunicava, destinatária do objeto - e pensar que em 1808 ainda estávamos pensando em "independência".

Todavia, para não dizer que não falei das flores, um tal de Francisco Azevedo, brasileiro, criou um objeto semelhante que causou um verdadeiro rebuliço na Feira Internacional de Recife, em 1861. Depois disso, surgiram nomes e mais nomes, marcas e modelos distintos. A brincadeira transformou-se em negócio, em linha de produção, e o final da história todo mundo já sabe. Mas não estou aqui para contar a história da máquina de escrever, e sim para contar a história de amor e paixão que tive na adolescência, lá por volta dos meus menos de quinze anos de idade.

Lembro que, em minha infância, quando eu entrava numa casa de algum morador da minha cidade natal Iraquara e via uma máquina de escrever descansando sobre uma escrivaninha ou qualquer outro sustentáculo, metida a figurar como um objeto qualquer dentre as tradicionais mobílias antigas bastante apreciadas pelos iraquarenses, ficava eu imaginando "O dono desta casa deve ser um escritor. Olha que máquina bonita!" Era babação mesmo, perplexidade.

Ali, ao lado dela, eu acabava idealizando um mundo feito de palavras, um universo de letrinhas que surgiam na folha em branco quando alguém ousasse tocar aquele "instrumento musical". Para mim, os sons que uma máquina de escrever emite são os mais apaixonantes que existem. Cada um com um timbre diferente, com uma afinação particular. Cada tipo é um acorde único e cada tecla batida é um esforço sentimental do ser humano, revelam um manifesto de desejo e de esperança. Realmente único o tempo de se ouvir.

Quando completei treze anos, ganhei minha primeira máquina. Não foi bem um ganhar, mas assim considero. Meu padrinho Tibiro, que já tinha me dado uma bicicleta e um carrinho de controle-remoto, presenteou-me com uma nota de cem reais. Sim, 100 reais! Na época, e ainda mais para um menino de treze anos, era realmente uma fortuna. Disse ele que assim seria melhor, pois que eu poderia comprar o que eu quisesse. Eu tinha apenas 13 anos de idade e cem reais no bolso.

Bem... vou contar uma coisa, mas não pense nada de ruim acerca de mim. É que naqueles idos a última moda entre os meninos iraquarenses da minha idade, pelo menos na minha cabeça, era a de matar lagartixas e passarinhos com espingarda de chumbinho, ou de pressão, como preferir. Foi mesmo uma revolução. Eu que tanto atirei pedra com beca feita com galho bifurcado dos pés de planta do quintal lá de casa ou compradas já prontas nas feiras de sábado...

Pois bem, dito e feito. Eu já sabia o que comprar com o dinheiro que tinha ganhado do meu padrinho: uma reluzente espingarda de chumbinho CBS. Para isso, guardei a quantia até o final do ano. Era quando íamos para o Agreste pernambucano, passear e rever a família do meu pai. Sabe como é, férias em novas terras... sempre uma novidade. E assim aconteceu.

Chegado o grande dia da minha vida! O dia em que compraria uma legítima espingarda de chumbinho CBS. O valor era esse mesmo, não ia sobrar troco. E eu nem faria questão. Meu pai me levou numa grande loja de variedades. Certamente, lá eu iria encontrar o objeto que tanto queria. Entrei veloz. Saí pedindo informações:

- Por favor, onde fica o setor de armas?

Aquilo soava estranho para uma criança de recém-completados treze anos de idade. Segui as dicas. No segundo piso, à direita do corredor principal, deparei-me com o balcão de armas. Acelerei os passos sem imaginar que, para se chegar ao balcão onde estaria a minha tão adorada espingarda de chumbinho CBS, teria eu de atravessar antes um corredor repleto de máquinas de escrever. Isso mesmo, prateleiras e gôndolas recheadas de máquinas de escrever, de diversos modelos e preços. Eram de tamanhos e cores e marcas variadas.

Quase tive um troço, como se diz por aí. Foi paixão à primeira vista. Eu: uma criança de treze anos de idade e cem reais no bolso que na noite anterior havia sonhado com uma fantástica espingarda de chumbinho CBS. Ela: uma Olivetti Lettera 25 portátil, de fabricação mexicana. Não hesitei. Foi amor. Olivetti foi o nome da minha primeira paixão.

Naquele mesmo dia firmamos um compromisso para a vida inteira. Não, não restavam dúvidas, o que eu sentia por ela era mesmo o amor. Não haveria palavras que pudessem descrever o quanto eu a amava e o quanto eu ainda a amo. Viajamos juntos para diversos lugares. Juntos, sempre, eu e ela. Uma companheira inseparável - sem falar que ela jamais me decepcionou. E quando fico longe de Olivetti a saudade torna-se insuportável.

A bem da verdade é que nunca aprendi a arte de matar. E se algum dia conjuguei desse verbo, fiz sem pensar. Eu não seria um bom atirador nem daria para ganhar a vida como atirador de aluguel, comendo calangos, passarinhos ou codornas fritas ao fogo da noite escondida. Talvez esta crônica não existisse se tudo isso que acabo de contar não tivesse acontecido da maneira como aconteceu. Ai de mim, Olivetti!

Drummond, deixe as formigas em paz!

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Ponto fraco


Por Germano Xavier

dobrar a curva
no meio do caminho para
perder a reta

ir sem meta
suturando o horizonte
velar toda seta

dar drible no rumo
atalhar remos às costas (separar víveres)
que o percurso pode mudar

Nada muito sobre filmes (Parte XXVII)

*

Por Germano Xavier



PROCURANDO DORY

Eu não estava com a alma aberta o suficiente para acabar gostando deste filminho, dirigido por Andrew Stanton e Angus MacLane. PROCURANDO DORY (2016) é uma espécie de continuação da animação PROCURANDO NEMO. Cochilei várias vezes durante a exibição. Pareceu-me um tanto que forçado. No pano de fundo, os humanos como o lado mal do planeta. Fui em busca de alguma analogia de ordem psicológica, mas o filme é 99% entretenimento. Alguém deve ter gostado de verdade...


FLORESTA MALDITA

Ô, filminho tosco. Nota 0 para você, FLORESTA MALDITA (2016), de Jason Zada.


BONECO DO MAL

Eu torci muito para que BONECO DO MAL (2016), dirigido por William Brent Bell, fosse, ao fim de tudo, um bom filme sobre as condições do sobrenatural. Mas, pasmem!, ocorreu-me mais uma tremenda de uma decepção. Mais uma frustração para o gênero terror (alguém precisa falar de filme de terror, ou não?!). O filme vai bem até a metade. Até a metade. Só até a metade. Do meio para o fim, é uma sucessão de erros gritantes. Cuidado: este filme pode fazer você rir, rir muito!


DEPOIS DA TERRA

Não tentem encontrar de novo a essência mágica de filho e pai contracenando no mesmo filme, como em À PROCURA DA FELICIDADE. DEPOIS DA TERRA (2013), de M. Night Shyamalan, não consegue repetir o brilho da dupla. Eu imaginei uma mistura entre o filme de 2006 com EU SOU A LENDA. Não é nada disso. Ficção científica que não convence. Faltou justamente aqueles detalhes, bem aqueles! Aqueles todos!


EU SOU ALI: A HISTÓRIA DE MUHAMMAD ALI

MUHAMMAD ALI é um mito do esporte mundial. Vespa dançarina do soco ligeiro. Marcou época, marcou mentes. Causou profanando golpes políticos por onde passava. Um monstro no ringue, quase imbatível. Um gigante ativista com Mal de Parkinson. EU SOU ALI: A HISTÓRIA DE MUHAMMAD ALI (2014), de Clare Lewins, é um bom registro para iniciação no legado de Cassius Clay.


CÃES DE ALUGUEL

Estreia de Quentin Tarantino nas telonas. Um clássico da década de 90 do século passado. Mas o que é um clássico? Não me pergunte. Clássico é. Diálogos monumentais, cenas de maestria. Ladrões de diamantes em profunda confusão mental. Tudo é pontual. Nada é de graça. Um filme com cacife de eterno. Vejam CÃES DE ALUGUEL (1992), por favor, bucaneiros. Recomendo a todos os mortais.


A NOITE DOS MORTOS VIVOS

Um filme que redefiniu o cinema de terror, ao tocar em conflitos sociais marcantes e tidos como tabus nos Estados Unidos e também no mundo à época, como racismo, horror às massas, distúrbios familiares etc. George A. Romero, em 1968, foi o mentor deste clássico-mor do gênero. Uma prova de quando menos é mais. É isso, terror como coisa séria. Terror e mente. Não terror-sangue e monstros-nada. Terror inteligente. Recomendo a todos os mortais!


* Imagem: https://coolturalblog.wordpress.com/2015/10/28/resenha-a-noite-dos-mortos-vivos-de-john-russo/

domingo, 9 de dezembro de 2012

Os livrinhos da Coleção Itaú 2012


Por Germano Xavier

O que fazer para salvar um morango suculentamente vermelho e maduro das garras de um grande urso esfomeado no meio de uma floresta? E se você fosse um ratinho, o que faria? A solução é simples: divida-o com outra pessoa e coma-o. Mas, e se você fosse um brinquedo e morasse numa loja de brinquedos e se, num certo dia, percebesse que sua melhor amiga-brinquedo tinha desparecido da loja, o que faria? Esperaria, como fez Lino. Afinal, ter paciência é uma dádiva. E se você tivesse um jeito certeiro de se encontrar com a poesia todos os dias, não seria maravilhoso? Por que você não tenta descobrir isto à sua maneira? É nesse ritmo que é forjado a tríade de livretos da Coleção Itaú de Livros Infantis 2012: O RATINHO, O MORANGO VERMELHO MADURO E O GRANDE URSO ESFOMEADO (de Don e Audrey Wood), LINO (de André Neves) e POESIA NA VARANDA (de Sonia Junqueira - Ilustrado por Flávio Vargas). Que venha a coleção 2013!

O caso da rua do albergue velho


Por Germano Xavier

Eu não tive culpa, isso é tudo o que posso dizer. Não tive como desviar o meu olhar naquele momento. Sabia que seria único, que outro de igual intensidade e vivido com o mesmo aturdido pulsar das artérias não haveria. Não podes julgar-me, sou um homem de bem. Vivi toda a minha vida sob total comedimento. Pois se há uma palavra que consegue resumir a minha mais vital característica, esta é a prudência. E, logo adiantando, pegar de uma arma de fogo para despejar sobre outro homem o vil projétil assassino nunca me foi uma atitude que causasse real interesse. Pelo contrário, desperta-me repugnância, e das mais contundentes. Se ao menos tivesse ouvidos para mim, poderia eu explicar-lhe o acontecido. Mas tu não me ouves, sequer por um reduzido instante. O teu desejo é apenas o de esmurrar-me, de me atirar contra as paredes da justiça, espetando-me facas afiadíssimas como quem sangra uma porção de carne destinada ao tempero. Por quê? Nada fiz, saiba disso. Àquela hora da noite, fui apenas um espectador. Poderia ocorrer com qualquer homem, e ocorreu comigo. Qualquer um perderia o seu rumo, o seu destino, diante de tão indigesto cenário. Tenho certeza que assim seria com o senhor, que no palco a mesma cortina possibilitaria a apreciação de teatro tão chocante. Foram essas as minhas palavras, dirigidas a um senhor que trazia estampado no centro da testa e na esquina dos olhos numerosas marcas profundas do tempo, e que denunciavam a sua já respeitosa idade. Lembro-me de tudo. Foi exatamente há duas semanas, numa mesma quinta-feira. Perto das quatro horas da tarde, logo quando resolvi tomar um suco de laranja numa das lanchonetes da Rua do Albergue Velho. Era de praxe andar ali, mesmo não sendo o caminho mais curto para se chegar ao local onde trabalho. Gosto de ficar olhando os velhos prédios, cada vez mais acobertados pela sombra dos gigantescos edifícios que tinham sido construídos naquele mesmo ano. Talvez as velhas construções, assim como os seres humanos, também necessitassem de um descanso no final de suas vidas, como uma espécie de recompensa após um longo período de dedicação e obediência. O certo é que todo aquele contraste me seduzia. As pessoas passando rápidas, esbarrando umas nas outras, como que tratores desgovernados. As sacolas cheias de compromissos e pressas. As crianças olhando paralíticas as vitrinas, sem sonhos. Tudo me paralisava, absolutamente tudo. Preferia o anonimato, pois nunca fui dado às lâmpadas. Não passo de um desconhecido. Moro sozinho num sobrado alugado ao preço de um saco de feijão, e isso tem já dois anos. Fiquei órfão de mãe aos treze. Meu pai morreu no mesmo ano que cheguei a essa cidade. Não tenho irmãos e meus parentes moram na outra extremidade desse país. É tudo muito difícil, se não fosse a bolsa que recebo da universidade, as coisas certamente estariam muito piores. Mas eu não esperava tamanho desrumo... eu não esperava. Ando pela noite sem buscar nem provocar situações, sem notar, sem me fazer notar. Permaneço no lado escuro da noite, mesmo que isso me assuste, tudo provoca prazer em minha alma. Conforta-me o lugar onde moro, mas não esqueço jamais o que vi certa noite. Até hoje não sei o que fazia ali, diante da polvorosa cena. Jamais intencionei entender o que se constrói nas mentes humanas - o que se passa nas vastas florestas cheias de fadas sombrias, permeando as flores que por ora sufocam-se com o pó tóxico de suas asas? Mas agora, ataca-me uma irresistível curiosidade para saber o que ocorria naquele triste cenário. Lembro que abordei o rapaz. Então, que me dizes? O que fazias tu àquela hora naquela rua? Não quero dizer aqui o que presenciei, falta-me coragem. Numa noite como tantas outras, na rua em que costumo passar às vezes, nada especial. Ando. Olho ao meu redor, penso em coisas minhas, quando de repente vejo o fato que faz surgir em mim pavorosa inquietação. Perguntas saltam precipitadas de minha mente. Ali, onde tudo já se tornara contrastante rotina, de onde o meu olhar se acostumara com as aparências das coisas e das pessoas, hoje lugar de pesadelo, apenas fui mais um passante. Não sei o que tanto faço andando pela noite. Na verdade, algo me toma e me ruma aos mais diferentes caminhos. Perco-me de mim mesmo. Então, despertado do transe quase que espiritual, ponho-me a divagar sobre o que sou. Mas há duas semanas evito sair de meu apartamento, da morada de dentro. Talvez, por viver sempre no ócio me ocorram essas situações desagradáveis. Minha idade não permite longas caminhadas. Apesar de velho, não perdi o interesse pela vida, principalmente noturna. Tenho amor pelas ruas escuras, desabitadas. Mas minha intenção nunca foi de observá-las e tampouco de entendê-las. Sigo sozinho neste meu tedioso destino. A noite me exerce misterioso fascínio. Sinto-me parte dela. Eis que acontece tal cena em minhas vistas e me quebra toda uma saudável rotina. Eu vi, tenho certeza do que agora afirmo. Eu vi o rapaz cometer a insanidade. Foi tudo tão rápido. A porta, o sangue, o corpo estendido e aquela cara de espanto para disfarçar o que tinha acabado de fazer. Pensas que não sei o que fizestes, pusilânime? Essas palavras dirigi a ele, que me respondeu sem franqueza. Não. Não continuarei a cismar sozinho nem tampouco me saciarei com tal resposta dada. Diga-me, rapaz, tudo o que te fez agir com nefasta atitude? Tenho ouvidos, mas são meus olhos que te denunciam! Eles presenciaram a tua desgraça. Não o conheço. O discurso de inocência é algo típico deste triste rumo. Não me convencerá. Somente os olhos podem legitimar a cor de um escuro, ou de um clarão. Somente ele, portador da máquina da memória, poderá te absolver. Toda cegueira é uma cicatriz de uma vergonha. Cegos, colocamos para dentro de nós o que não poderíamos perder. O escuro eterniza o que um dia foi evidente. De nada servirá enfiar esta faca que agora seguras nos meus olhos. Nada apagará o que vi. Meu olhar é tua própria lâmina.

sábado, 8 de dezembro de 2012

Poema Niemeyer


Por Germano Xavier


grande revelação uma geração eterna
envolta num traço
- seres fora-dentro -
caminho andado andança comum
de pobre de rico de quem quiser partir

parteiro de obras
quem curva uma reta escreve novo
o mundo pelo atalho mais longo
o perto-distante reino do ir

Campo de imersão


Por Germano Xavier

apalpo a pilha de livros
na estante e é
como suas costas largas,
um andaime frágil eu subisse.
se você
soubesse que pus a rodar
um disco azul
para te lembrar na fria noite
em cima dos morros
não sopraria seus ardis
na direção tortuosa das febres.

venha ver o oratório, o busto
de um deus,
a cobertura felpuda
de um agasalho empalhado
no cabide e saberás, intimamente,

que da chama muída
e pertinaz das horas
que me abraçam abordo
um bruto aspecto de pressa e vagar.
estas tônicas
visitas melíferas e inesperadas
são porções fúteis
de infância que combato.

aberto, o dicionário prende
as asas de uma falena possível.
há vôos, há ânsias,
há apenas o gotejamento.
mas tu não te entregas, fazes corpo mole
e esta tu’alma rija, tu,
tu que me aspiras,
pois sou o pó. e te inalo,
sobre o sofá sujo de engodos vitais
e gorduras,

exalando amor, amor, amor...

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

O curioso caso das lendas negras

Imagem: Google
Por Germano Xavier

Se perguntarem a você algo sobre lendas e mitos da América do Norte ou da Europa, muito provavelmente você saberá responder, ter uma ideia ou aventar algo à respeito - a menos que você não se interesse mesmo por tais assuntos. Este panorama muda se o questionamento for transplantado para as coisas da América Latina, Ásia, Oceania, e por aí vai. Se te perguntam sobre as coisas da África, aí o repertório de informações pode zerar de uma vez por todas. Afinal, o que sabemos sobre este misterioso continente, berço das civilizações e palco de incontáveis histórias? O que trazemos em nós sobre os povos Kói, Quimbundos, Batongas, Nupês, Dogons, Suaílis, Xosas, Lesotos, Zulus, Iorubas, Chagas, Quicongos, só para citar alguns? O que sabemos sobre países como Botsuana, Angola, Mali, Tanzânia, Nigéria, África do Sul, Quênia, Congo, Namíbia, Sudão? Vai me dizer que você conhece o mito de Tsui'Goab? E a história de Kigbo e os espíritos do mato?

Infelizmente, estamos falando de um continente onde os diversos aparelhos midiáticos ainda não resolveram entrar da forma como deveriam. Um atraso milenar foi o que restou - se bem que a razão para tanto atraso não está somente atrelada a este problema. Conhecemos a África dos animais selvagens, dos conflitos e das guerras civis, das epidemias de Ebola e Aids, a África da fome e da miséria, da sede e dos desertos desumanos, mas não conhecemos quase nada além disso. Questionamentos desta natureza abrem o livro Lendas Negras, adaptado por Júlio Emílio Braz e ilustrado por Salmo Dansa. Ao fim de tais reflexões, é como se vivêssemos em um mundo onde os reinos de Ghana e Achanti, onde os impérios Mali, Songai, Kanem-Bornu e Bambara não existissem, o que realmente é uma pena.

A população jovem pouco ou nada sabe sobre estes povos e territórios, apesar de que ultimamente tem sido mais aclamadas as coisas que em alguns países africanos estão sendo produzidas, principalmente em termos lítero-artísticos. Para desmistificar um pouco este universo pouco navegado é que Braz organizou a obra que por ora lhes apresento. Lendas Negras é classificado como infanto-juvenil, é recheado por 8 lendas de povos diferentes da Mãe-África e funciona muito bem como uma introdução a tais cenas. Os mitos percorrem a imaginação de quem lê de forma a produzir sensações que dialogam com nossos instintos mais primitivos, como os da generosidade, da gratidão, do medo, do respeito à natureza, da vida e da morte. Para quem interessar possa, está aí uma boa dica.

Sobre viagens e cidades perdidas


Por Germano Xavier

Era sempre um dia alegre e de muita expectativa quando o ano novo despontava às nossas vistas. Aliás, a espera vesperal por aquela tradicional viagem chegava ao seio de nossa família como uma caixa de foguetes a estourar traques de alegria. Nunca fora tão bom deixar a cidade que suportava, o ano inteiro, os pesos do corpo e da alma. Era um tempo de visitas e revisitações a um passado-presente não muito distante. E era, também, a chance que o meu pai tinha de rever os seus parentes e irmãos, que viviam entre a seca nordestina e a criação de galináceos para o abate esporádico e tradicional.

O destino era o de sempre, um lugar chamado São Bento do Una, cidade de médio porte do Agreste pernambucano, surgida lá pelos meados de 1825 e elevada à categoria de cidade em 08 de junho de 1900. Um lugar que me remonta peças de um quebra-cabeça feito de estripulias infantes, lagartixas mortas a balas de chumbinho oriundas da espingarda de pressão dos primos Anderson e Cleiton, este o maior atirador dos quatro - o D’Artagnan e, nós, os Três Mosqueteiros, parafraseando o clássico de Alexandre Dumas(Pai). Isso a considerar, também, que meu irmão Gustavo fazia parte do quarteto assassino de pequenos répteis naquelas tardes ensolaradas de prazer e risos felizes.

Lembro como hoje a combustão interna que me atacava sempre que ouvia alguém lá em casa fazer, assim sem muito alarde e a qualquer hora do dia, uma espécie de contagem regressiva para a nossa partida.

- Faltam dois dias - alguém sempre lembrava.

- É amanhã, sairemos ainda de madrugada - a voz do pai direcionando vontades e esperanças.

Na época, meu pai contava com o Ford Del Rey de Luisinho, mecânico da cidade vizinha de Canarana-BA, carro grande e espaçoso, sempre emprestado para uma viagem que, por vezes, chegava a durar um mês.

O dia que tardava a vir, o dia que vinha...

Tudo escuro ainda na Iraquara de madrugadas frias, acostumada com a gelidez do ar que namora o alto das serranias, e uma família de malas justapostas no porta-malas de um carro acinzentado. As portas da casa trancadas, algumas luzes acesas para mentir presenças, o coração saltitando e a oração clássica ensinada por minha mãe:

“Desta casa vou saindo
nesta estrada vou entrando
com Jesus no meu caminho
e Nossa Senhora me acompanhando”.

Éramos quatro signos de um só desejo: viajar.

Um último aceno para a nossa casa na rua Tito Luna Freire, para o velho posto de gasolina na entrada da pacata Iraquara, um estalido sentimental de “Até breve, se Deus quiser!”, uma rota longa de aproximadamente 1.200 quilômetros pela frente, roteiro quase sempre variado pelo motorista-mor, meu pai. Era quase sempre assim, íamos por uma estrada, voltávamos por outra. E grande porção da Chapada Diamantina lentamente ia ficando para trás se olhássemos pelos retrovisores. E assim, num misto de apego ao que ficava e querença por velhas novidades, tocávamos a ir em frente.

Primeiras cidades ultrapassadas num rojão de 90 quilômetros por hora, ainda com o sol bocejando seus primeiros raios. Souto Soares, Cafarnaum, a frienta Morro do Chapéu, local de parar para apreciar os macaquinhos do saudoso restaurante. Pé na estrada novamente, e logo a “Terra do Ouro” Jacobina, porção piemonte da ilustre Chapada. Mais um pouco à frente, despontava Senhor do Bonfim - de um bom fim inicial, deveras. O pé calmo de meu pai ainda friccionando o acelerador do sempre ajustadinho automóvel e, já sem demora, 120 mil metros depois, surgia o símbolo maior de uma viagem divertida e indelével.

Era a cidade de Juazeiro, namorado de Petrolina, mulher mais moça.

Pronto! A maior das expectativas: atravessar a ponte Presidente Dutra, aquela coisa linda que nos fazia flutuar por sobre um rio São Francisco tão maravilhosamente colorido de um verdazul cintilante, cor de êxtase e frenesi - só lembrando que quem fazia o papel de guia turístico era o meu pai, sempre revelando nomes e histórias curtas dos lugares por onde passávamos. Eis a primeira impressão deste lugar que tenho salvaguardado em minha memória.

Duas cidades enamoradas, separadas por um vale de águas caudalosas e perenes, manancial de identidades e certezas de um povo que, no mínimo, devia viver sorrindo, tamanha a sorte de povoar uma localidade tão singular.

Aqui estaciono a viagem e, também, o itinerário deste texto, como de praxe fazia meu pai no posto de gasolina, já na saída de Petrolina. Parada para o almoço. Cheguei ao ponto onde queria.

Não suspeitava eu que, alguns anos mais tarde, de Iraquara viria a morar nesta cidade baiana, agora um estudante de Jornalismo recém-chegado à terra das instigantes carrancas, protetoras dos pescadores e dos homens fluviais. Confesso que Juazeiro era mais bonita e apaixonante na minha infância-adolescência, quando rapidamente perscrutava seus contornos e seus flancos coloridos. Do mesmo modo, acerco-me da mesma idéia e confirmo as fantasias diminuídas dos meus olhos quando nestes tempos vindouros retorno à cidade que me viu nascer.

Hoje, anos após desembarcar de um ônibus da viação Guanabara, que rumava à capital cearense como parada final, Juazeiro não passa de uma atriz coadjuvante, desbotada pela sua violenta e paradoxal paisagem social (fato ainda mais evidente do outro lado do rio), enegrecida por suas idiossincrasias bestiais de fins de semana, calejada por um povo “coberto de lama”, amarrado a partidos políticos e homens demagogos, doente de dor identitária ferida pela evolução das coisas.

Juazeiro, e também Petrolina, onde outrora fiz residência, são hoje apenas suportes para uma vida pacata de mais “um rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior” - só para lembrar o cantor cearense Belchior, do interior do estado da Bahia, centro da Chapada.

Não há mais aquele cheiro impregnado de mistério nem o sabor de uma desconhecida essência corporal, o que, querendo ou não, minha Iraquara aprendeu a preservar, ainda que perdida em intensidades. Esvaiu-se a grandeza e a imponência dos arranha-céus presentes em ambos os rebordos, hoje meramente prédios cor de tisne, carceragens humanas.

Perdeu-se, tudo, ou quase tudo, a magia das sereias do rio, o imaginário mítico que eu mesmo construía ante o abisso das águas, a candente chama da emoção do atravessar a ponte - hoje rotina, a esfera radiosa de um local que, para mim, era povoado por deuses, titãs, ninfas, musas, entidades ultramarinas, heróis mil de um mundo que era só meu. E que, infelizmente, não o é mais. O que ainda restou, e o que ainda restará, eu sei, é somente este ver bravio de um povo atarrafador de sorrisos, de uma gente pescadora de sonhos, iguais àquela que emerge dos solos iraquarenses. Apenas...

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

De quando Aristóteles beijou Anchieta no mato chamado Brasil


Por Germano Xavier

(ou palavras verdes sobre o Auto de São Lourenço)

Em seu tratado, o filósofo Aristóteles compartimentaliza a ação dramática em dois tipos diferentes: o tipo “simples” e o tipo “complexo”. O primeiro refere-se a tudo que elabora um desenvolvimento contínuo e linear, sem quebras ou rupturas; já o segundo tipo é imbricado por uma série de acontecimentos que fogem a ordem lógica das ações, por quebras e ações curvas ou diagonais – entende-se por “ações curvas ou diagonais” toda variação de ação/atitude no sentido inverso do que está sendo indicado ou produzido.

Algumas dessas “ações curvas ou diagonais”, por vezes acabam em resultar numa determinada “inovação revelativa” – a retratação da personagem é consciente, durante todo o espaço de tempo que a obra demanda para sua expressão completa, de uma informação que transformará drasticamente sua história.

Todo e qualquer material dramático-narrativo revela uma história, a partir de um ângulo, de um ponto de ênfase ou de um prisma específico e destina-se a encadear inúmeras seqüências efabulativas, cuja atuação é vivenciada pelas personas ficcionalizadas e, como todo instrumento de narração, situa-se num dado espaço, de um respectivo tempo, ligando-se através de meios comunicativos a partir da fomentação de um discurso que interage e dialoga com muitas outras narrativas, no justo desígnio de que seja percebida, apreendida e compreendida pelo complexo de espectadores e/ou leitores.

O Auto de São Lourenço é recheado de personagens e situações que tecem o seu caráter dramático. Refiro-me às batalhas e à dança, instrumentos que serviram de base para narrar todo o trajeto do santo. A sucessão dos fatos é organizada de forma que a urdidura textual percorra uma trilha uniforme e coerente. Existem diversos aspectos que terminam por denotar a inteligência do missionário ao tecer o corpo da trama. A prática das ações sempre percorre um espaço que foi sugerido – e não apresentado nos mínimos detalhes. Porém, é também digno de nota o recurso de substituir o mecanismo sincrético religioso por outro, ao qual poderíamos nomear de sincretismo demonológico.

Outro argumento pertencente ao teatro de Anchieta bastante interessante é o processo de organização e exposição do tempo. Aqui, diferentemente do que acontece com o teatro clássico, a forma teatral é caracterizada por sua liberdade frente às unidades de ação, tempo e espaço. A narrativa é um evento já ocorrido, pertencente ao que já é ido, ao passado, estrutura temporal que tece o princípio de narração, de esclarecimento, de explanação de um fato relevante para um determinado grupo social, em uma dada época histórica.

O caráter de memória é, também, penso eu, um valor a ser considerado no apontamento da peça de Anchieta. Além, é claro, do transmitir história aos mais novatos de todas as gerações. Desse modo, Anchieta faz aproximar os demônios da igreja católica dos demônios tradicionais e recorrentes aos índios (a tomar como exemplos Guaixará, Aimberê e Saravaia). Os demônios tomavam para junto de si os horríveis costumes indígenas: o fumo, o curandeirismo e a poligamia. O texto conversa com os índios, interagindo também com os portugueses e com os espanhóis.

Já no que condiz ao “processo de transplantação cultural e ideológico do sistema católico-cristão para o território brasileiro”, com base no estudo do texto, percebe-se que há uma troca de postos. O “ser-católico” desvirtua a grandeza intrínseca do nativo e faz o próprio nativo rebelar-se contra o seu igual. Sabiamente, a figura de alguns autóctones acaba sendo elaborada pelas mãos da ordem católico-cristã de alguns enviados, no intuito de macular sua índole natural e acabar produzindo uma espécie de asco e repulsa por parte dos seus habitantes natos, se assim posso dizer.

Há uma ruptura identitária, uma destruição de semblantes, numa linguagem mais figurada. O nativo se revolta contra o que é nativo, posto a tamanha e marcante persuasão discursivo-ideológica imposta pelos dominadores. O dominado crê no ente “superior”, agora de tez branca, vestido, calçado, ornado e agora mais sábio que ele e todo o seu grupo.

Ainda no enxergar do texto, a aculturação ao universo “branco” deu-se por inúmeros pólos de atração. O comércio, o diálogo, a retórica e a imposição são apenas uns dos exemplos a serem citados. A prática catequética funcionaria, também, como um dos fortes imãs de atração. Fica evidente o uso de iniciativas a fim de prover uma nova e, por vezes, voraz forma de carregamento idiossincrático-ideológico, cultural e político de organização e gestão social aos indígenas, sem que fossem obrigados a sair de seus terrenos ancestrais.

O Auto de São Lourenço encarna o embate entre a moral cristã e a moral indígena, e significa, estudando o personagem do anjo e da atitude das criaturas santificadas, a ação da ordem cristã sobre a nativa através da pregação dos padres. Como a intenção de Anchieta era a de catequizar, a chave de ouro da peça visa alcançar este fim objetivado. Daí o afã de demonstrar a potestade dos signos cristãos sobre os signos pagãos. Ter a glória, na cultura indígena, é ser honrado, homenageado. Destarte, Anchieta fomentava no índio a ânsia de ser vitorioso como as personagens assim o eram, o que servia de instrumento introjetor e facilitador nos exercícios de inculcação dos valores católicos. Para o jesuíta, o insubstituível, nesses casos, era pôr na figura indígena a noção de que aquilo que é pecado virá ao nativo sob forma de conseqüências negativas, ao passo que atuar de acordo com o pregar do homem branco aparecerá para ele em forma de dias de maior felicidade e congraçamento.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Módulos-Bresson


Por Germano Xavier

Cabeça:

Jugular-angular. Base. A voz em tons. Toda cabeça é uma noite. Toda cabeça é uma noite? Toda cabeça é um sol ao quadrado. Toda cabeça é um caminho e uma perdição. Na cabeça está o instante íntegro, o que é puro ainda. Há nela a sedimentação do desejo, que era apenas um envolvimento de Andrômedas distantes. Toda cabeça é um sistema nervoso.

Olho:

O olho é o revólver. Todo olho atira. Todo olho atinge. Todo olho perfura, marca, fere. Todo olho sangra. O olho é a parábola. A decisão. O olho ataca porque sabe que vence. Nunca perde porque nenhum olho perde. Até o olho que não vê, vê. Ver é um estado crítico. Leão domado o olho que se esconde.

Coração:

Todo coração é um banimento. Todo coração é um aterro sanitário. É nele onde se atira o bruto. O coração não filtra. O coração é ingênuo. O coração é um bom samaritano. Guarda até o odiável. Todo coração é um medo de fotografia. Ele sempre some na revelação. Quem conhece um coração? Coração só sabe amar, mesmo quando não ama. Todo coração é um sistema penoso.

domingo, 2 de dezembro de 2012

O anjo excedente


Por Germano Xavier

continuação para o conto "Réquiem por um fugitivo",
de Caio Fernando Abreu.


Agora, sempre que entro no quarto que foi de minha mãe até o dia em que ela partiu para a outra terra, para a outra parte desse mundo, tão existível e desconhecida tanto por mim quanto por você, sou levado a caminhar por toda a área do pequeno e misterioso cômodo. Todo dia, antes de abrir a porta, um pensamento atravessa minha mente e é como se, no fundo de mim, eu ainda acreditasse que descerrando aquela porta rústica a encontraria deitada em sua cama, vestida com aqueles olhos de preguiça típicos de quem está desadormecendo, e que aos poucos a veria espreguiçar-se belissimamente, como que pressentindo ali a minha presença. Por isso, antes mesmo de pôr as mãos na fechadura, algo estranhamente sublime me acontecia e de súbito uma força leve cobria meus dedos e punhos, fazendo-me lançar sobre o gélido ferro da porta mãos que não eram as minhas, de tão exageradamente suaves e delicadas. O quarto ditosamente é o mesmo. Foi de minha vontade deixá-lo do mesmo modo como minha mãe o deixou antes de partir em definitivo. A cama permanece no centro, majestosa, com um ar de trono peculiar, penso, a uma rainha que é imortal. O criado-mudo encostado na parede, ao lado direito da cama, com sua parte marmórea brilhando de tão encerada. O abajur com a lâmpada azulada que ela usava porque tinha receio da escuridão total do quarto. O chapeleiro onde pendurava suas bolsas e cintos, a pequena estante negra, sua caixinha de música, suas poucas jóias e alguns penduricalhos. Tudo guardado no encanto do amor, como se o ato de guardar os seus objetos far-me-ia estar também a guardar para sempre a sua imagem em mim. Deus sabe como dói o peito quando me invisto naquele setor da casa, como me acerco de uma falta de ar que me comprime o corpo. Só não há mais o velho guarda-roupa, mas isso não tive como evitar. Existe uma forma de lembrança que é aterradora. Hoje, depois de revê-lo partir junto a minha mãe, no filme de nossas existências, ruflando suas asas e atirando-se sem medo ao mundo imenso dos mundos através da janela desse quarto, eu me pergunto por que razão não tive forças na voz para lhe dizer alguma coisa nas vezes que o vi, alguma palavra que fosse ao menos amiga e carinhosa, e que lhe confortasse um pouco ou lhe dissesse que eu me sentia bem sabendo que estava ali, dentro do móvel preferido de minha mãe, protegendo-a contra qualquer mal possível, protegendo-me também, mesmo você não suspeitando disso, apenas com a sua forte presença. Quando penso que perdi todo esse tempo, que não fui capaz de abraçá-lo sequer uma vez, que não arranquei para fora o meu orgulho hipócrita para dizer do meu amor por você, vejo o quão devo ter sido um filho ruim, um filho indigno, sem amor no coração. Eu que passei todos aqueles anos desconfiando de você, sem saber quem realmente era, o que pretendia, o porquê de viver naquele canto tão escondido da vida, completamente retorcido, amordaçado por um ar preso, morando dentro do guarda-roupa da minha mãe, despedaçando-se aos poucos. Demorei muito para acreditar na idéia de que minha mãe era o fator dissonante de toda essa história. Ela havia mentido para mim e eu fui caindo em sua teia sem maldade, aprisionado como um inseto perdido na selva das coisas. Mas ela fez tudo ser desse jeito porque antes de tudo ela me amava como a um filho legítimo, que tinha dentro de si o mesmo sangue que nela corria. Por isso não guardo mais mágoa, o tempo nos previne de muitas judiações e por vezes apaga o que é para se ter piedade. E aquele meu ar de mediocridade diante de mim mesmo, do poder revelador de minha face, assim como a ausência de um algo que me avisasse acerca da real direção dos ventos, para onde iríamos todos, aonde chegaríamos, o que encontraríamos no final do corredor da vida ou em uma de suas inúmeras curvas, aquilo tudo me fazia pensar duas vezes antes de fitar a verdade que existia dentro daquele seu olhar. Você soube nos auxiliar sem mexer suas asas. A vida parecia mais limpa quando eu saboreava um pouco de sua realidade. Era como se uma criança, carregada pelo pai numa estação repleta de pessoas, tomasse o rumo certo-incerto de sua liberdade e, a partir de uma fuga, começasse a descobrir-se, desabrochar-se como faz uma luz ao se acender em câmera lenta. Eu retrago esses fatos à tona porque hoje é, talvez, o dia mais importante da minha vida. Sozinho nessa casa, ao longo de dias na companhia da tristeza e do sofrimento, coisas fantásticas me aconteceram. Paulatinamente, meu corpo sofreria alterações profundas. Sem dor sentir, duas pequenas asas nuas de pena brotariam em minhas costas. Não fora derramado sangue nem feito quaisquer intervenções cirúrgicas para tal. Simplesmente um par de asas nascera em mim e, ao transcorrer das horas, elas ficariam preenchidas com alvas penas, essencialmente macias e confortáveis. Intrigantemente, diferente do que poderia ter ocorrido com outra pessoa, aceitei a mutação como um adolescente aceita o engrossar de sua voz no início da puberdade. Confesso que, por diversas vezes, esbarrei o meu novo órgão na estreita porta da cozinha, ainda desacostumado com o volume, e também no box do banheiro, quando distraidamente deixava o sabonete escorregar de minhas mãos e dava os volteios necessários para apanhá-lo novamente, mas nada que me fizesse sentir ojeriza por estar a carregar em meu dorso um par de asas angelicais. Desde aquele primeiro dia de mutação, percebi que você era o meu pai. Sim, eu sou o teu filho, posso exclamar, um legítimo anjo como você também o é. E hoje, pai, hoje é o dia que voarei pela primeira vez. Eu decidi tudo, é o meu mais íntimo desejo. Vou sair pela mesma janela que você saiu. Vou alcançar os galhos mais altos da nossa árvore, e com toda a força que tenho te encontrar. Sou a criança liberta de qualquer amarra, que jamais se esquece de pagar pelas imateriais fortunas adquiridas. Sou o filho que viu o pai sofrer e nada fez por não saber, simplesmente. Hoje habitarei o mundo por sua causa. E vai ser agora...

sábado, 1 de dezembro de 2012

Fronteiriços


Por Germano Xavier


onde a terra se acaba
e o mar começa
onde a onda baqueia
e a maré alcança a lua
o tema de minha vitória
é sempre um estar procurando
como algas em águas leves
como brumas em ares breves
o verde no vapor das coisas

Palavras para viver mais


Por Germano Xavier

Algumas coisinhas que nos avivam por dentro no somente lembrar...